Tenho constatado uma certa incoerência, no que se refere ao uso do tempo neste de distanciamento social, por conta da pandemia. Por incrível que pareça, para muitos, o tempo é curto em se tratando de aproveitá-lo para muitas coisas, inclusive, claro, para a leitura. Porém essa realidade, com esse “novo normal”, está se reestruturando aos poucos. E aquele tempinho reservado para a leitura deve permanecer sempre.
Outra coisa que reforça esta relação entre tempo e leitura é que a oferta de livros parece ser proporcional ao surgimento dos fatos – e estes não param de acontecer. De outra forma, podemos até dizer que os livros, dividindo espaço com os textos jornalísticos e outros tantos gêneros, surgem em decorrência dos inúmeros acontecimentos sociais que, obviamente, lhes servem de inspiração para que estes fatos cheguem até nós, de forma diferente. Diferente, levando em consideração a televisão, os blogs, as redes sociais. E haja fôlego para ler tanta coisa, não é mesmo?
Considerando esta breve reflexão, trago esta dica de leitura: Todos contra todos: O ódio nosso de cada dia, do filósofo e professor Leandro Karnal. De preço bastante accessível, variando entre 10 e 15 reais em uma das livrarias virtuais mais conhecidas atualmente. Neste livro, Leandro Karnal combina as características que o transformaram em um dos historiadores e pensadores mais populares do Brasil: erudição e leveza, profundidade e humor. O autor é um dos atuais responsáveis por aproximar a filosofia para pessoas que até então a enxergavam como algo inalcançável. É cada vez mais comum encontrarmos, além dos inúmeros títulos já publicados, muitos vídeos redes sociais. Todos com a preocupação de nos ajudar a decifrar o indecifrável ou a enxergar além do óbvio.
“Os números de mortes no trânsito do Brasil são de fazer inveja a muita guerra. E aparentemente isso não nos choca. Temos um dos trânsitos mais violentos do planeta.” (p.48)
É um livro onde podemos encontrar um mix de reflexões que consideram fatos atuais, trazidos através de diversos ângulos: histórico, social, filosófico, político, antropológico e tantos outros. A estrutura segue este modelo: entre o Prólogo” e os “Agradecimentos”, Karnal nos apresenta os seguintes textos: O paraíso pacifista, Somos todos racistas?, A violência nossa de todos os dias, Tudo começou em nós mesmos, O amor contra o dragão da maldade e da inveja, A globalização não aumentou o ódio, A internet facilita a vida de quem odeia, A violência política, Duas soluções: coerção e consenso.
“O nazismo funciona do mesmo modo que a escravidão: uma parte se aproveita de um sistema, uma maioria é conivente e uma minoria constitui o grupo de resistência.” (p. 27)
Três palavras descrevem rapidamente a essência deste livro: polêmico, provocativo e instigante. Os textos que o formam giram em tordo da afirmação de que o ódio é um dos espelhos mais poderosos para olharmos o nosso próprio rosto. Que a maldade é tão próxima do ódio quanto da inveja. Em tempos de xenófobos, misóginos e homofóbicos, o autor nos mostra que a história e a realidade revelam um lado sombrio do brasileiro que costumamos não reconhecer. Somos, sim, violentos no trânsito, nas ruas, nos comentários das redes sociais e fofocas nas esquinas. Igualmente somos violentos ao torcer por nosso time e ao votar; somos violentos em nosso dia a dia, das formas e por motivos mais variados e até mesmo fúteis possíveis.
“O contato com o outro mostra muito a nossa incapacidade de viver com a diversidade e de achar um fundamento de identidade na violência e na explosão.” (p.104)
O livro escancara a polêmica das palavras agressivas, a natureza das reações raivosas dirigidas ao outro e o porquê de escondermos de nós mesmos as pequenas e grandes maldades do dia a dia. Leandro Karnal coloca-se como aquela pessoa que age como professor, como palestrante, como orientador e até como conselheiro, discorrendo de forma esclarecedora sobre assuntos da nossa atualidade. Constatações fortes, muitas vezes frustrantes e assustadoras, porém com algumas doses de ironia. É isto o faz dessa leitura algo bastante prazeroso. É aquela conversa com o(a) leitor(a), em tom de partilha. Então, vale a pena conferir!