Bolsonaro flerta com seu próprio 7 a 1

O roteiro é parecido, mas o filme é bem outro.

Por Matheus Pichonelli
Colunista do Yahoo Notícias

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Protestos contra um governo com popularidade em queda, organizados um ano antes da eleição, colocaram em xeque as prioridades de investimentos públicos às vésperas de um grande evento esportivo.

O roteiro é parecido, mas o filme é bem outro.

Na esteira das manifestações de junho de 2013, era comum observar nas ruas que reuniam multidões cartazes e bandeiras pedindo escolas e hospitais padrão Fifa. Era uma crítica direta às exigências das autoridades esportivas para dar direito ao Brasil de sediar a Copa do Mundo de 2014. Um dos critérios era a construção de arenas com um selo de qualidade dos mais exigentes — enquanto, longe das arquibancadas, os súditos pagavam cada vez mais por cada vez menos. Inclusive o transporte público, o pivô da revolta.

Os gastos para a construção ou reformas de 12 estádios das cidades-sede, parte deles elefantes brancos até hoje sem função definida, além das remoções no entorno das arenas, como a do Maracanã, no Rio, entornaram o caldo de revolta popular que derrubaria, sem volta, a popularidade da presidenta Dilma Rousseff.

Eleita um ano depois, para logo enfrentar um traumático processo de impeachment, a petista não era o único alvo dos protestos, que acertaram no que viram e o que não viram entre governadores, prefeitos e políticos em geral. Estava demonstrada ali a mais latente crise de representação do novo século, que jogou os partidos tradicionais à vala comum, pouco antes de a Lava Jato passar o trator sobre os escombros.

A Copa do Mundo ainda tinha como justificativa a geração de empregos diretos e indiretos e a enxurrada de turistas vindos de toda parte do mundo para assistir suas seleções. As obras de infraestrutura necessárias para ligar os estádios à rede hoteleira e outros hubs serviriam como legado.

Havia revolta, mas havia também expectativa. Tudo para acabar em 7 a 1. No campo e fora dele.

Antes, em junho de 2013, a Copa das Confederações serviu como uma espécie de aperitivo para o Mundial e os ânimos populares. Estima-se que, durante os jogos, mais de 860 mil pessoas foram às ruas em protesto nas cidades-sede, mobilizando mais de 50 mil agentes de segurança.

A euforia com a vitória de pirro contra a Espanha, na final, se arrebentou um ano depois.

“Imbroxável” e “imorrível”, Jair Bolsonaro parece percorrer a mesma fiação elétrica de 2013-2014 como quem tenta provar que com ele a história não se repete, nem como farsa, nem como tragédia.

Com a popularidade em queda, a palavra impeachment no radar, com cada vez mais apoiadores da ideia, e um dia após as maiores manifestações de rua contra seu governo, o capitão que levou meses para responder uma proposta de compra de vacinas da Pfizer se prontificou rapidamente a receber um torneio que nenhum país vizinho quis correr o risco de sediar.

A Copa América, que inicialmente ocorreria na Colômbia, país em ebulição por causa de protestos populares, foi transferida para a Argentina, que sentiu o cheiro da encrenca (e de uma nova onda pandêmica) e declinou.

O Brasil matou no peito e disse à Conmebol, a autoridade sul-americana de futebol, que topava. Em ótima hora: se tudo der errado, a bola começa a rolar quando atingiremos a marca de 500 mil mortes por coronavírus.

Não é outra a razão para o cansaço de milhares de pessoas que decidiram assumir o risco de ir às ruas em protestos contra o presidente —que desde o início da crise não fez outra coisa se não promover aglomerações em causa própria e sabotar os esforços pelo isolamento social e a vacinação.

A resposta do presidente diante do rastilho de pólvora em direção ao Planalto foi trazer o isqueiro e a gasolina. É a senha para novos protestos do tipo “Não vai ter Copa” (América, no caso).

Nada explica a compra de uma briga inútil por um torneio para o qual ninguém se importa. Nem mesmo os jogadores, que já não se preocupam sobre a estrutura da rede hoteleira dos anfitriões, e sim se há vagas em UTIs em caso de emergência.

Este torneio de importância zero, impossibilitado de receber torcedores —e consequentemente movimentar a economia — deve mobilizar milhares de agentes de segurança e outros responsáveis pela logística das delegações e suas estrelas, que circularão durante quase um mês por um país deflagrado pelo vírus e a revolta popular.

Por que, ainda assim, Bolsonaro bancou o projeto e aceitou um desafio com o qual só tem a perder?

A resposta povoa o mesmo mundo paralelo onde cloroquina é salvação, armamento civil é proteção e Ricardo Salles tem alguma autoridade para falar de meio ambiente.

O rescaldo da aposta pode ser a nova versão do zagueiro que, ao fim de surra histórica, apareceu diante das câmeras, os olhos inchados, dizendo que só queria dar alegria para o seu povo.

Se lesse os cartazes, Bolsonaro veria que o que o povo quer é vacina no braço e comida no prato.

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