O conto da aia – por Marcos Tomé

O diferencial, desta vez, está justamente em quem protagoniza as cenas.

Escrito em 1985, pela canadense Margareth Atwood, este livro inspirou uma série do mesmo título, originalmente conhecida como The Handmaid’s Tale, produzida em 2017. É mais uma distopia. O diferencial, desta vez, está justamente em quem protagoniza as cenas, em quem encabeça a história, em torno de quem a narrativa se desenvolve: uma mulher chamada Offered. A história se passa em um futuro próximo e tem como cenário uma república conhecida como Gilead, onde não existem mais jornais, revistas, livros, filmes. As universidades foram extintas e já não há mais advogados, uma vez que ninguém tem direito à defesa. Os cidadãos, uma vez considerados criminosos, são fuzilados e expostos em um muro, em praça pública, até apodrecer, para que sirva de exemplo.

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E quem são as aias? São mulheres consideradas férteis e que tem como maior obrigação contribuir e promover a procriação. A aia é escolhida para permanecer em uma casa, convivendo com a esposa e com o marido, mantendo relações sexuais como o esposo até que fique grávida e dê à luz um filho para aquele casal. Isto porque a infertilidade feminina tornou-se um dos males sociais, ficando a procriação a cargo de algumas mulheres que não foram acometidas por esta limitação, tornando-se reféns dos poderes políticos para esta obrigação. Nesta sociedade, as mulheres não têm direitos. São divididas em categorias, cada qual com uma função específica no Estado.

“Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços em branco não preenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava liberdade. Vivíamos nas lacunas entre as matérias.” Pág. 71

Tudo nos é contado por Offered, a protagonista. A partir dela, passamos a compreender, aos poucos, como está organizada a sociedade da época, quais funções atribuídas aos homens e às mulheres, como todos convivem sob este regime teocrático, totalitarista, patriarcal e, consequentemente, repressor, silenciador, castrador. Uma história repleta de suspense, pela qual somos conduzidos por diversos lugares, juntos com Offered e com os demais personagens, perambulando por cada rua, cada casa, cada cômodo.

“Mas isso está errado, ninguém morre por falta de sexo. É por falta de amor que morrermos. Não há ninguém que eu possa amar, todas as pessoas que eu podia amar estão mortas ou em outro lugar. Quem sabe onde estão ou quais são seus nomes agora? Poderiam muito bem não estar em lugar nenhum, como eu estou para elas. Também sou uma pessoa desaparecida.” Pág. 125

Sobre minha experiência de leitura neste livro? É como se alguém desconhecido se aproximasse de mim, em praça pública, na presença de pessoas amigas e outras desconhecidas e me desse um susto bastante desagradável. Uma reação mista de surpresa, indignação, revolta, medo, insegurança. Pelo menos foi o que veio à minha mente, ao terminar pela segunda vez a leitura. Sem exagero. Mas por que repetir a leitura? Para confirmar meu entendimento sobre a primeira, corrigir algumas impressões e preparar-me para a continuação, com o outro livro.

Depois destas considerações, eu diria que é um livro brilhante. E você me perguntaria: “Brilhante? Como assim? Depois dessa comparação? Ainda leu duas vezes?” É que o desenrolar da história (que não tem tanta ação) se dá mais em torno das descrições, que por sinal formam a maior parte do texto. Sendo assim, a leitura exige bem mais atenção, um olhar mais investigativo, apurado, paciente. Por outro lado, o que marca o desenvolvimento da narrativa são as ideias, as reflexões e análises da protagonista. Que acabam sendo também nossas análises. Aí vem a sensação incômoda de que a leitura “não anda”, não flui. Boa parte da história e dos diálogos são fluxos do pensamento da protagonista, revivendo também alguns momentos de sua vida com o marido e com a filha, que já não estão mais com ela.

“Melhor?, digo, em voz baixa, apagada, Como ele pode pensar que isto é melhor? Melhor nunca significa melhor para todo mundo, diz ele. Sempre significa pior, para alguns.” Pág. 251

Nem todas as experiências de leitura têm aquele fim encantador, que nos deixa com um sorriso largo no rosto, ou com lágrimas de emoção, apegados aos personagens, ou ainda sem vontade de sair daquele cenário exuberante. Sem falar que esta história não se esgota, não se encerra neste livro. Há continuação com o outro, “Os Testamentos”.

Para finalizar, reforço que minha experiência com “O conto da aia” me prova que não necessariamente, para um livro ser satisfatório, ele tem que abordar só assuntos encantadores. As distopias estão aí para confirmar e reforçar esta tese. São maravilhosas justamente por provocarem estes efeitos, eu diria, impactantes. E o impacto vem justamente deste confronto que fazemos entre o tema abordado e a sociedade na qual vivemos hoje. São leituras como esta que nos alertam a respeito de uma sociedade que pode não apenas ser fruto do imaginário de alguns escritores. Que não fazem parte simplesmente de um futuro distópico. Podemos já viver em uma e nem nos damos conta disso. Vão encarar mais este desafio?

1 COMENTÁRIO

  1. Belíssima interpretação, já li esse livro e tive a mesma sensação em alguns momentos da narrativa. Um livro muito rico em suas indagações e pra terminar a meu comentário, pra mim esse livro como tb suas continuações que por sinal é é fascinante nos deixa um recado. Podem até tentarem aprisionar nossos corpos, mais jamais nossas mentes. Parabéns pela escolha da narrativa.

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